O campo da saúde mental vem mudando vertiginosamente no Brasil nas últimas décadas, por meio de uma reforma psiquiátrica que foi substituindo os hospitais e asilos psiquiátricos tradicionais, verdadeiros campos de concentração e praticamente o único tipo de serviço disponível no país até os anos 1990. Neste processo, que tem o apoio da ONU, de suas convenções de direitos humanos, da Organização Mundial de Saúde e de países com transformações semelhantes, os usuários de serviços e seus familiares se aliaram aos trabalhadores de saúde mental, e se organizaram no movimento antimanicomial, que vem reivindicando e conquistando estas mudanças.
Para quem não conhece essa história, textos como os de Roque Jr neste livro podem parecer ter um estilo autobiográfico muito auto-referente, muito centrado na pessoa de seu autor e de suas conquistas. Contudo, o que quero argumentar aqui é que está aí mesmo seu maior mérito e objetivo mais importante. Nas lutas por serviços de saúde mental abertos, humanizados e na comunidade, nos principais países onde estas mudanças estão ocorrendo, as narrativas pessoais de vida e convivência com o sofrimento mental, em depoimentos vivos ou em vídeos, mas principalmente publicados em papel ou na Internet, têm tido uma enorme importância. Por exemplo, em 2006, nosso projeto de pesquisa na UFRJ publicou um livro inteiro só com estas narrativas, escritas diretamente pelas próprias pessoas,ou na forma de transcrição de suas entrevistas, que está disponível nos sites de venda na Internet . Este livro teve um impacto significativo em todo o campo da saúde mental no país.
No livro, indicamos as várias linhas de importância das narrativas pessoais de vida e convivência com o sofrimento mental, escritas em primeira pessoa do singular (“eu fiz isso e aquilo, etc “....), que faço questão de reproduzir aqui. Estas narrativas constituem:
a) uma forma de se apropriar das experiências catastróficas de vida, principalmente associadas às fases mais agudas do transtorno, e dar um novo sentido a elas em um conjunto mais compreensível de eventos, sentimentos e sensações integrados em um todo, resultando em ‘dar de volta a si mesmo algo que tinha sido perdido ou guardado no baú trancado das experiências dolorosas’;
b) uma forma de aceitar o transtorno mais integralmente, como uma experiência radical e difícil, mas que constitui parte integral da vida humana;
c) uma estratégia que possibilita outros usuários a ter contato entre sí e aprender individual e coletivamente, a partir da vivência daqueles que têm mais experiência no processo de recuperação, com um grande potencial de uso nos grupos e dispositivos de cuidado de si e de ajuda e suporte mútuos, e mesmo nos serviços formais de saúde mental;
d) uma afirmação da experiência subjetiva humana e de seu papel como sujeito, em detrimento da autoridade e das narrativas feitas de fora e de cima pelos profissionais e especialistas, e contra a impessoalidade e padronização de sistemas de assistência centrados nas prioridades de eficiência, economia de recursos ou até mesmo de segregação e negligência, particularmente no atual contexto de crise das políticas sociais;
e) uma estratégia de mostrar como as representações sociais, culturais e institucionais modelam a experiência de estar “adoentado”, denunciando e iluminando os conflitos e as estruturas de poder entre usuários e as culturas institucionais de assistência, desafiando as ideologias dominantes de tratamento/assistência e os padrões aceitos de comportamento neste campo, essencialmente marcados pela polarização entre passividade (por parte dos chamados “pacientes”) e atividade (pelos “profissionais”), bem como apontando direções para mudanças em todo o campo;
f) uma voz autêntica e instrumento de mudança social, cultural e institucional na sociedade mais ampla, principalmente tendo em vista as denúncias de violações de direitos efetuadas pelos serviços de psiquiatria convencionais e as atividades e lutas pela defesa e conquista de direitos e a luta contra o estigma e discriminação associados ao sofrimento mental, que emergem nestas narrativas;
g) uma forma de texto com enorme potencial literário, que além de seu próprio conteúdo, a singularidade dos processos subjetivos dessas pessoas estimula níveis variados de criatividade e elaboração estética e linguística, capacitando seus autores a atingirem níveis de qualidade para publicarem suas obras em papel e na Internet, o que também implica em valorização de seus autores e maior difusão de suas ideias.
A partir desta visão mais ampla da luta antimanicomial e da importância das narrativas pessoais de vida e convivência com o sofrimento mental, acredito ter possibilitado ao leitor ter compreendido melhor a enorme relevância do conjunto da obra de Roque Jr..
No entanto, este livro tem uma importância muito especial. Roque Jr. está comemorando neste ano de 2021 seus 50 anos de vida, com 50 livros publicados, e o nascimento de seu primeiro neto, o Pedro, que está chegando em breve, que o levará a assumir o papel, como ele mesmo diz, de “avôdastro”. Todas essas são, sem dúvida alguma, marcas muito importantes na vida de qualquer ser humano sensível, que merecem portanto um ‘ritual’ especial de narração e comemoração.
Este livro, então, me parece ser um texto de balanço e comemoração de todo este percurso. Primeiramente, são inúmeros capítulos em que descreve seus “40 anos de desejo de escrita”, o que gerou em 1988 seu primeiro texto autoral publicado, e seu primeiro livro publicado no ano de 2020, e cerca de 7 livros de textos poéticos. É invejável o que ele escreve sobre seu processo de escrita: “não preciso de inspiração para meus escritos, minha literatura flui normalmente”, ou ainda, “chego a produzir 3 ou mais obras simultaneamente”. Ele descreve aqui em detalhes as formas variadas de escrever, em papel, computador e mesmo no telefone celular, quando fora de casa, indicando inclusive também os vários programas de computação que utilizou durante a sua carreira.
Para Roque Jr., “escrever é minha terapia constante”, e sua forma de compartilhar com os leitores seus conhecimentos, experiências e estratégias de lidar no dia a dia com o sofrimento mental, concretizando muito do que vimos acima das características e objetivos das narrativas pessoais de vida com o sofrimento mental. Mas não só isso, escrever também é para ele uma forma celebrar as muitas conquistas e coisas boas que aconteceram e ainda seguem acontecendo em sua vida, como por exemplo, seus atuais nove anos de vida conjugal feliz com a esposa Martha.
Em paralelo a sua atividade de escrita, nestes muitos anos, o nosso Roque vem realizando dezenas de lives, palestras e oficinas, e vem assessorando gratuitamente muita gente, particularmente sobre o processo de escrita. Adicionalmente, fez inúmeras doações de seus escritos e livros, particularmente a escolas, ou disponibiliza alguns deles para livre acesso integral em seu site na Internet, www.RoqueJR.com.br . Além disso, sua página no Facebook tem mais de 750 seguidores, e muitos de seus livros estão disponíveis nos grandes sites de venda na Internet, tais como a Amazon, Americanas, Submarino, etc.
Se tomarmos a liberdade de falar em partes do livro, algo que não é possível distinguir na sequência visível dos capítulos, seus primeiro capítulos focam principalmente seu processo de escrita. Depois, é possível identificar um segundo conjunto de capítulos, no qual Roque aborda mais suas experiências com o sofrimento mental, as diversas estratégias de lidar e as formas de tratamento que acabou experimentando, inclusive algumas internações em hospitais psiquiátricos convencionais ou em hospitais gerais. E é claro, nos revela também as formas atuais, de acompanhamento com um psiquiatra respeitoso e de sessões semanais de psicoterapia, duas formas que valoriza muito, como coerentes com o que reivindicamos na luta antimanicomial, os tratamentos em liberdade.
Neste segundo conjunto, também nos oferece suas experiências de atuação política, no movimento estudantil, quando jovem, e de forma mais contínua até hoje, no movimento antimanicomial. E conclui seu trabalho com uma espécie de testamento, projetando o que gostaria de realizar durante os muitos anos que terá em sua vida depois dos 50, que agora comemora. E ainda nos dá de “lambuja” uma vasta lista com dicas de filmes, livros, sites na Internet e trabalhos acadêmicos que considera importantes para todos aqueles que se interessam ou atuam no campo da saúde mental e na luta antimanicomial.
Antes de terminar esta apresentação, é impossível não comentar o estilo próprio de escrita que o nosso autor desenvolveu.
Em primeiro lugar, está atualíssimo nas estratégias politicamente corretas de outros movimento sociais nossos aliados, como o feminista e o LGBT +, contra o sexismo inserido nas regras estruturais da língua portuguesa, que nos mandava flexionar no masculino quando nos referimos a um conjunto de pessoas de sexos diferentes ou identidades sexuais diferenciadas. Para isso, utiliza o (@) ou o (x) em vez do (o) ou do (a), para conseguir gerar um gênero neutro. Uma segunda estratégia importante é utilizar aspas para se referir ao seu diagnóstico psiquiátrico convencional, de “bipolaridade”, ou utilizar o recurso do atachado, para lidar com palavras e termos indesejáveis do ponto de vista político ou ideológico, duas estratégias importantes também no campo da luta antimanicomial e na luta contra a discriminação e estigma, como indicamos anteriormente.
No entanto, é preciso registrar, e o que achei muito interessante no texto de Roque, é sua fluidez na escrita, ou mais propriamente, de ‘fala escrita’. Digo isso por que nosso autor escreve como se pensasse de voz alta, ou como se tivesse contando seus casos para um amigo próximo, sentado na sala ou na cozinha de sua casa. São interessantes também suas regras próprias de registro temporal do ato de escrever, pois cada trecho ou capítulo traz o registro da data e da hora em que foram escritos, além de ter sempre uma epígrafe para estimular nossa veia poética ou musical. Os muitos capítulos, que são sempre curtíssimos, não trazem espaços diferenciados nem mudança de página entre um e outro, ou seja, seguem o curso linear do texto nas páginas. Me pareceu que a principal razão disso é permitir que seus livros não tenham muitas páginas e possam se divulgados aberta e gratuitamente na Internet, o que é muito louvável. E também gostei do formato de suas publicações, sempre em tamanho de bolso.
No mais, sobre os demais aspectos e conteúdos deste seu 50.o livro, não quero dar mais detalhes, ou qualquer forma de spoiler, expressão em inglês que significa contar para outras pessoas a estória de um filme ou peça teatral, diminuindo a expectativa de quem manifestou o desejo de assisti-los. Desta forma, convido o próprio leitor a curtir seu direito sagrado de saborear, com vagar, as muitas delícias de cada página deste livro, nas quais Roque Jr. expressa sua vida em sua forma própria de “fala escrita”.
Boa leitura!
Eduardo Mourão Vasconcelos
Rio de Janeiro, março de 2021
ISBN | 978-65-002-1877-0 |
Número de páginas | 112 |
Edição | 1 (2021) |
Formato | Pocket (105x148) |
Acabamento | Brochura s/ orelha |
Coloração | Preto e branco |
Tipo de papel | Offset 80g |
Idioma | Português |
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