Antes a gente lia muito Álvares de Azevedo, Fagundes Varella e Alphonsus de Guimaraens. E se decorava bastante. Tinha gente que sabia A Flor de Maracujá de cor, que se divertia com as rimas em a. Eu decorei Ismália inteirinho para uma prova oral de português e lembro de vários trechos até hoje. Quem era mais afeito à ideia de liberdade bradava estrofes de Augusto dos Anjos e de Gregório de Matos. Largar um “escarra nessa boca que te beija” numa conversa ordinária marcava a passagem da infância para a adolescência, desenhava esse lugar de rebeldia. Os poemas assim, de forma geral, ou ficavam quietos ou se moviam entre essas paródias e arremedos, entre a cafonice e a amortização da experiência. Se encerravam em escolas, eram guardados nos cadernos e automatizados nos ouvidos. Hoje a gente deve à poesia alguns gestos que lhe foram subtraídos. Gestos corporais, gestos de atenção, de resistência, gestos de ficção e gestos de linguagem. Já não é o caso de nos sentirmos satisfeitos com o decoro, mas, sim, de perseguir a perturbação, o infortúnio, a ofensa, o sentir.
Acredito que o compromisso da Cristiane com a literatura, especialmente nesse livro, passe pela reinvenção da nossa relação com a poesia. Falo de poesia como quem diz algo sobre as palavras misteriosas que continuam reverberando na gente, como quem entende que ela mora no ponto em que a linguagem se estilhaça, lá onde a falta não permite expressar com clareza o que se sente, quando não se diz senão pela literatura. Cris imagina e sente escrevendo. Tem essa racionalidade literária. Sobretudo, cria um espaço em que as figuras giram em torno dela: a descrição dos sentimentos e também de sua ausência dançam em círculo, lançam uma sombra ou contorno, firmam a superfície daquilo que se entregou. De fora se vê que ela se deteve com a poesia num corpo que nega as passagens de cor, que não se dispõe às divisões escolásticas ou às regiões de privilégio, que se teve com a poesia numa atenção plural e sensível, de travessia e de experiência, numa linguagem que quer brincar com a linguagem.
N’A paixão segundo G.H., Clarice diz o seguinte: “Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra?”. Acho mesmo que essa incerteza diante da vida e da morte se encontra representada na dúvida anunciada, na desconfiança pela narração do que se viveu, na curiosidade sobre o que se poderia ter vivido se o acontecido fosse ouvido de outro jeito. Dois lados compartilha da mesma matéria; não só descreve de forma delicada o que se deu a ver, o que se pensou existir, mas, sobretudo, investiga a potência da promessa e da pergunta. A imagem não deixa de ser curiosa e amável. Na obra, os afetos, cada um deles, ganham essa espessura de descrição e de incerteza, de entrega e reserva, de tradição e espanto, constatação e reinvenção dos traços, dos corpos e das estações. Fico contente de poder te ouvir, maravilhado pela tua coragem de olhar, pelo gesto de compartilhar o que de nós se sabe e se desconhece, pela presença tão marcadamente espetacular da ausência de decoro.
ISBN | 9786554801683 |
Número de páginas | 96 |
Edição | 1 (2024) |
Formato | A5 (148x210) |
Acabamento | Brochura c/ orelha |
Coloração | Preto e branco |
Tipo de papel | Ahuesado 80g |
Idioma | Português |
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