Escravidão e Pastoreio no Paraná
(Mário Maestri)
A América Lusitana nasceu e se consolidou sob o signo da escravidão colonial. Desde os anos 1530, com o movimento de ocupação territorial das conquistas lusitanas na América do Sul, a população autóctone, primeiro da faixa atlântica, a seguir do interior, foi submetida e dizimada na dura exploração das fazendas, roças e vilas do litoral. Quando essa população sofrida mostrou-se incapaz de sustentar o esforço produtivo da economia mercantil, iniciou-se o desvio de parte significativa do tráfico que arrancava das costas da África Negra, desde 1444, homens e mulheres para trabalharem como cativos na península Ibérica e na América hispânica. De três a cinco milhões de africanos foram desembarcados com vida nas costas das capitanias e províncias do Brasil, enquanto multidões de outros morreram quando do aprisionamento, embarque e transporte, na África e na terrível travessia.
O Brasil foi a região das Américas mais acabadamente escravista. Foi uma das partes do Novo Mundo a conhecer em forma mais precoce, nos anos 1530, a organização escravista mercantil e foi o último país do continente a aboli-la, em 13 de maio de 1888. Foi a região que importou o maior número de africanos cativos, que produziu os mais variados tipos de mercadorias com o trabalho escravizado e não teve parte de seu território que não conhecesse a instituição medonha. Houve regiões onde os cativos se apinhavam, em outras, eles subsistiram em menor número. Até a superação do escravismo, não houve parte do Brasil que não se apoiasse, mais ou menos, na produção servil.
Tão profundas eram as raízes escravistas da colônia lusitana que, quando se estabeleceu a crise colonial, as múltiplas províncias enfeixaram-se em um Estado monárquico, centralizado, autoritário, construído em torno do príncipe herdeiro da casa real portuguesa com a qual se rompia, tudo para não comprometer a ordem escravista. A ordem escravista embalou o unitarismo brasileiro e, por longos 66 anos, a ordem monárquica bragantina, sob o cetro dos dois Pedros, filho e neto do lusitano e absolutista dom João VI, esforçou-se para manter e esticar a vigência da escravidão muito além do imaginável.
Em 1888, quando a escravidão ruiu sob o movimento avassalador da fuga dos cativos sobretudo das fazendas paulistas, onde se haviam concentrado em menor número devido às necessidades da produção cafeicultora, a ordem monárquica se dissolveu, rapidamente, já sem fundamentos, como sorvete ao sol. Então, ela deu lugar a uma república federalista e elitista e nada democrática e popular, sob o tacão dos grandes proprietários regionais de terra, com talvez a única exceção do Rio Grande do Sul, onde um bloco social englobando industrialistas, comerciantes, pequenos colonos-proprietários, etc. defenestrou os grandes latifundiários do poder político regional, através de uma guerra de singular violência, de 1893-95.
No Brasil, a feitorização dos trabalhadores escravizados viabilizou a produção das grandes mercadorias de exportação, com o destaque para o açúcar, os minerais, o café, o algodão, o couro, o charque. Processos que tem sido objetos de valiosos estudos. Além das grandes fazendas, os cativos monopolizaram o esforço produtivo e os serviços nas cidades e na vilas do litoral e do interior, onde era muito difícil viver sem o braço escravizado para transportar, que se desempenhava em mil atividades. Nos anos 1980, a historiografia brasileira abraçou com vigor essa realidade, já iluminada por Gilberto Freyre, em Sobrado e mucambos, nos anos 1930.
Alguns importantes domínios da economia escravista no Brasil foram fortemente secundarizados ou, até certo ponto, ignorados por nossa historiografia, como a pesca da baleia e, sobretudo, o transporte fluvial e de cabotagem. Os rios do Brasil escravista já foram com razão comparados a artérias negras, devido ao papel determinante desempenhado pelo marinheiro escravizado. A intervenção do trabalhador escravizado na produção pastoril foi outro fenômeno investigado em forma tardia. Preconceitos ideológicos encontram-se certamente entre as razões desse atraso.
Tradicionalmente, o cavaleiro foi tido como ser social superior ao pedestre (peão) e as práticas pastoris, apresentadas como uma espécie de produção sem trabalho, cadinho de homens livres, bravos, destemidos, indômitos, ainda que rústicos. Nas visões tradicionais sobre o passado do Extremo Sul ou do Nordeste, as atividades pastoris teriam sido monopólio dos altaneiros gaúchos e vaqueiros. Seriam sociedades pastoris onde a produção era quase um jogo e que aproximavam e não opunham proprietários e trabalhadores livres. Espaços sociais e econômicos praticamente livres da pecha da escravidão, em oposição ao resto do Brasil.
A ordem escravista colonial organizou poderosamente as atividades produtivas centrais e determinou e influenciou inexoravelmente, em graus diversos, as práticas econômicas secundárias. O caráter necessariamente imperfeito e subordinado do mercado de trabalho livre em uma região onde o monopólio do uso da terra se estabelecia com dificuldade, determinava a utilização do braço escravizado nas mais diversas atividades, principalmente enquanto ele foi abundante. O próprio espaço colonial-camponês conheceu, aqui e lá, no relativo às atividades de apoio não agrícolas, uma aparentemente paradoxal infiltração escravista.
Nos últimos anos, avançaram o interesse e as investigações sobre o escravismo pastoril no sul do Brasil. No Programa de Pós-Graduação em História da UPF, tivemos o privilégio de orientar diversos trabalhos sobre o pastoreio e escravidão. Beatriz Eifert defendeu, em 2006, a dissertação de mestrado “A escravidão e as fazendas pastoris de Soledade, no Planalto Médio. Séc. 19”. Em 2009, Setembrino dal Bosco apresentou o trabalho “A Fazenda Pastoril no Rio Grande do Sul: 1780-1889”. Por sua vez, em 2010, Mateus Couto defendeu estudo comparativo da demografia de municípios pastoris e charqueadores no meridião do RS, no século 19. Os arquitetos Nery Luiz Auler da Silva, em 2003, e Fabiano Teixeira dos Santos, em 2008, defenderam, respectivamente, dissertações sobre as “Antigas fazendas sulinas: no caminho das tropas do Planalto Médio. Século 19” e “A casa do planalto: arquitetura doméstica rural e urbana na região dos Campos de Lages, séculos 18 e 19”. Em 2008, o historiador oriental Eduardo R. Palermo apresentou dissertação sobre a sociedade pastoril do norte uruguaio, verdadeira extensão do meridião escravista sul-rio-grandense.
Em 2008-2009, sob os auspícios do CNPq, coordenamos pesquisa sobre a escravidão e pastoreio que extrapolou os Estados de Rio Grande do Sul, Piauí e Mato Grosso do Sul, definidos inicialmente como marcos do estudo. Foram produzidos três volumes com trabalhos de, entre outros historiadores, Adelmir Fiabani, Eduardo R. Palermo, Elaine Cancian, Ester J.B. Gutierrez, Fabiano Teixeira dos Santos, Júlio Ricardo Quevedo dos Santos, Luiz Mott, Mário Maestri, Maria do Carmo Brazil, Mateus Oliveira Couto, Paulo M. Esselin, Paulo A. Zart, Solimar Oliveira Lima.
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Em 18 de dezembro de 2014, José Lucio da Silva Machado defendeu, no Programa de Pós-Graduação em História da UPF, dissertação de mestrado intitulada “O Sertão e o Cativo: Escravidão e Pastoreio. Os Campos de Palmas - Paraná 1859-1888”. Participaram da banca examinadora os doutores Ironita Policarpo Machado [PPGH UPF], Flávio dos Santos Gomes [PPGH UFRJ] e Mário Maestri [PPGH UPF, orientador]. Agora, esse valioso trabalho é publicado, sob o mesmo título, sem qualquer modificação de conteúdo, na Coleção Malungo, dedicada a trabalhos acadêmicos sobre o escravismo.
No contexto de um enfoque global, que parte da discussão da estruturação da economia escravista colonial, José Lucio da Silva Machado registra a tradicional negação da importância da escravidão na economia criatória, em geral, e nos campos de Palmas, tradicional região de produção pastoril e agrícola também apresentada comumente como estranha à produção escravista. A partir do cuidadoso estudo de ampla documentação primária arquival - inventários post-mortem, registros de batismo, registros de compra, etc. - José Lucio da Silva Machado estabelece os importantes nexos e dependências da sociedade dessa região da escravidão.
O perfil demográfico, a dispersão e as profissões masculinas e femininas dos cativos; a estrutura de posse e de valor da mão de obra escravizada, com concentração nas propriedades mais ricas; os segmentos que mais facilmente eram alforriados; os valores dos cativos, são alguns dos tantos aspectos dessa realidade que se materializam diante dos nossos olhos, resgatados de um olvido em grande parte produto de historiografia construída fortemente a partir do metro curto dos preconceitos classistas, étnicos e ideológicos.
Importante destaque é dado ao registro da difusão e importância dos cativos campeiros, diretamente envolvidos nas tarefas criatórias regionais, registrando a participação plena da região em uma realidade comum a enormes espaços dedicados à produção pastoril através do Brasil imperial, periodo abordado pelo estudo. José Lucio registra, igualmente, a ocupação de jovens escravizados, quase crianças, nas práticas pastoris, anotada em estudos sobre outras regiões. Aponta igualmente a quase desconhecida existência de cativos tropeiros empregados nas importantes tropas que percorriam os campos paranaenses, também elo de ligação entre o sul e o resto do país.
Com a publicação de O Sertão e o Cativo: Escravidão e Pastoreio. Os Campos de Palmas - Paraná: 1859-1888, de José Lucio da Silva Machado, a historiografia brasileira e paranaense passam a contar com confiável e clarividente estudo sobre aspecto semi-desconhecido de nosso passado, de singular importância.
ISBN | 9788567542140 |
Número de páginas | 194 |
Edição | 1 (2015) |
Formato | A5 (148x210) |
Acabamento | Brochura c/ orelha |
Coloração | Preto e branco |
Tipo de papel | Offset 80g |
Idioma | Português |
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