No Brasil, o choque entre a racionalidade econômica e a racionalidade ambiental torna-se evidente na pesca artesanal, dando origem a inúmeros problemas. Essas racionalidades disputam territórios, recursos, assim como o domínio do conhecimento e de projetos futuros. Os pescadores artesanais veem seus territórios tradicionais e os recursos ambientais sendo destruídos pelo avanço da modernização, ao mesmo tempo em que são considerados, na lógica dominante (moderna), como incultos e entraves para o desenvolvimento. Nesse processo, destacam-se conflitos entre os agentes do capital e os pescadores artesanais, que reivindicam o direito ao território tradicional, assim como o reconhecimento de seus conhecimentos adquiridos ao longo de gerações, através da relação com o ambiente e das relações sociais que conformam o território.
Ao mesmo tempo em que as comunidades tradicionais se veem atacadas em seu direito de permanecer e gerir o território, vivemos uma crise ambiental global sem precedentes, resultante do padrão de produção e consumo inerentes ao modo de produção capitalista e do desconhecimento das consequências do conhecimento científico moderno. Assim, valorizar o conhecimento tradicional, reconhecer os povos tradicionais como especialistas na gestão ambiental e garantir a eles o direito de uso do território tradicional são ações necessárias nos âmbitos político, científico e social. Isso trará benefícios para toda a sociedade, seja pela qualidade ambiental resultante da gestão comunitária e compartilhada do território, seja pelo fornecimento de alimentos, proporcionando principalmente às populações mais pobres segurança alimentar.
É relevante entender a pesca artesanal brasileira por meio da Geografia, pois inúmeros geógrafos abordam em artigos, livros, monografias, dissertações e teses as problemáticas da pesca artesanal. Assim, essa obra contribui para a sumarização e análise desses estudos, sobretudo de dissertações e teses, o que favorece o estabelecimento de diálogos entre pesquisas e a discussão da pesca artesanal em escala nacional. Isso auxilia na proposição de respostas aos problemas dos pescadores artesanais e destaca tendências na produção acadêmica da Geografia brasileira, principalmente no que diz respeito ao diálogo de conhecimentos entre pescadores e geógrafos.
Também é importante entender essas pesquisas no momento atual da Geografia brasileira, tanto em relação ao estágio do pensamento geográfico quanto ao processo de institucionalização da Geografia por meio da expansão e consolidação da pós-graduação. Isso tem tornado visíveis sujeitos sociais até então marginalizados e permitido a realização de pesquisas em diversas regiões e localidades. Destaca-se a existência de grupos de pesquisa que abordam os pescadores artesanais em seus estudos, o que também possibilita entender a pesquisa brasileira sobre a pesca artesanal. Diante da necessidade de articulação, é importante frisar a iniciativa de construção de um trabalho em rede, como é o caso da Rede de Geografias da Pesca.
Os diálogos de saberes permitem a (re)significação dos conceitos geográficos de ambiente e território, de maneira que sejam operacionais e apropriados pelos sujeitos da pesquisa, proporcionando uma leitura mais precisa da realidade estudada. O reconhecimento dos saberes tradicionais dos pescadores, em sua dimensão territorial, permite preencher a lacuna no conteúdo da "tradição" do conhecimento e contribui para os debates na construção e avaliação de políticas públicas para a pesca artesanal brasileira, de forma a serem congruentes com as particularidades dos diversos territórios tradicionais das comunidades de pescadores artesanais. Nesse caso, destaca-se o processo de discussão sobre territórios tradicionais desencadeado pela "Campanha Nacional pela Regularização do Território das Comunidades Tradicionais Pesqueiras", promovida pelo Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais - MPP.
O livro apresenta as reflexões da tese de doutorado intitulada "Geografia(s) da Pesca Artesanal Brasileira", defendida em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRGS. No entanto, os dados que fundamentam a análise foram atualizados até 2021. É importante ressaltar que essa publicação não abrange todo o contexto vivido pelas comunidades tradicionais de pescadores artesanais no Brasil. No entanto, sua contribuição está voltada para responder à questão norteadora:
Qual é a compreensão da Geografia brasileira sobre a dinâmica dos territórios tradicionais dos pescadores artesanais? Em que medida seus conceitos, métodos e abordagens dialogam com o conhecimento tradicional dos pescadores artesanais em situações em que as comunidades são desterritorializadas? Até que ponto a compreensão desse processo pode contribuir para repensar a Geografia brasileira, a gestão comunitária da pesca artesanal e os contextos de luta por políticas públicas voltadas para o território das comunidades de pescadores? As respostas a essas questões estão apresentadas nas três partes deste livro.
A primeira parte, intitulada "A Dialógica entre Geografia e Pesca Artesanal Brasileira", tem como objetivo responder à pergunta "Qual é a compreensão da Geografia brasileira sobre a dinâmica dos territórios tradicionais dos pescadores artesanais?" Foi entendido que a resposta está presente na análise da produção acadêmica da Geografia brasileira sobre a pesca artesanal. Assim, foram analisadas dissertações de mestrado e teses de doutorado desenvolvidas por geógrafos que pesquisam a pesca artesanal no Brasil e defendidas no período de 1982 a 2021. Buscou-se entender as principais problemáticas, teorias, métodos e técnicas de pesquisa. Além disso, a espacialização desses trabalhos por meio de representação cartográfica permitiu refletir sobre a pesca e sobre a própria Geografia brasileira. Essa análise panorâmica possibilitou a identificação de possibilidades de interpretação da Geografia em relação às problemáticas da pesca artesanal. Além disso, contribuiu para inferir a potencialidade de articulação em um trabalho em rede.
A segunda parte, intitulada "Território, Ambiente e Pesca Artesanal: uma Leitura a Partir da Geografia Brasileira", buscou responder à pergunta: Em que medida seus conceitos, métodos e abordagens dialogam com o conhecimento tradicional dos pescadores artesanais em situações em que as comunidades são desterritorializadas? A partir da visão panorâmica dos estudos sobre a pesca artesanal na Geografia brasileira apresentada na primeira parte, foi identificado um recorte analítico que enfatiza a relação entre ambiente e território. Dessa forma, são analisadas as atividades econômicas que confrontam a pesca artesanal sob essa perspectiva. Esses contextos foram selecionados para que essa compreensão abranja a diversidade de territórios pesqueiros presentes no Brasil e as problemáticas associadas a eles. Assim, surge o desafio de garantir que as compreensões geradas correspondam às demandas dos pescadores artesanais, levando em consideração suas estratégias de luta. Além disso, buscou-se revisar conceitos como pesca, pescador, comunidade, conhecimento, gestão comunitária e compartilhada, assim como territórios e territorialidades da pesca.
Na terceira parte, intitulada "As Faces da Modernização e Ausências de Sujeitos e Territórios da Pesca Artesanal na Geografia Brasileira", buscou-se entender "Até que ponto a compreensão desse processo pode contribuir para repensar a Geografia brasileira, a gestão comunitária da pesca artesanal e os contextos de luta por políticas públicas voltadas para o território das comunidades de pescadores?". Propõe-se que, a partir das compreensões estabelecidas na segunda parte, seja possível discutir os territórios tradicionais das comunidades de pescadores artesanais em relação ao movimento social. Para essa discussão, estabelece-se a relação entre os contextos em que os geógrafos desenvolvem pesquisas e ações junto aos pescadores, e as problemáticas apresentadas por meio de denúncias pelo Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais - MPP, e principalmente pelos Relatórios de Conflitos Socioambientais e Violações de Direitos Humanos do Conselho Pastoral da Pesca - CPP, publicados em 2016 e 2021. Nesse sentido, estabelece-se uma relação entre as propostas analíticas de compreensão de ambiente/território e a expressão da modernização, que é apontada pelos movimentos sociais que defendem o território tradicional como o principal opositor. Por fim, retoma-se a discussão sobre a própria Geografia como uma ciência que dialoga com os grupos sociais, superando as invisibilidades e evidenciando situações de conflito, o que pode auxiliar na garantia dos direitos fundamentais e no reconhecimento da comunidade pesqueira como tradicional, conferindo-lhes o direito de permanecer no território.
Na expectativa de que o livro promova debates, desejo uma boa leitura,
Cristiano Quaresma de Paula
ISBN | 9786589013112 |
Número de páginas | 320 |
Edição | 1 (2023) |
Formato | A5 (148x210) |
Acabamento | Brochura c/ orelha |
Tipo de papel | Estucado Mate 90g |
Idioma | Português |
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